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24 de abril de 2014

A Reinvenção da Amazônia: Oportunidade para o Brasil se reorganizar no Século XXI?

  
Thomas A. Mitschein *
Ailton P. Lima **
Evandro Ladislau***

 * Sociólogo, Dr. Phil. pela Universidade de Muenster, Alemanha. Pesquisador e Professor, desde 1992, em diversas unidades técnico-científicas da Universidade Federal do Pará e de países amazônicos.  

** Bacharel em geografia e Mestre em Gestão de Recursos Naturais e Desenvolvimento Local na Amazônia pela Universidade Federal do Pará.

*** Assistente Social Especialista em Inovação e Difusão Tecnológica, Mestre em Gestão de Recursos Naturais e Desenvolvimento Local pela Universidade Federal do Pará. Ambientalista e Coordenador Executivo da Rede Sustentabilidade no Pará.


I

         No debate ecológico internacional, a Amazônia brasileira costuma a ser abordada como um dos mais importantes pólos da biodiversidade nesta assim chamada vila global.   Na vida real, entretanto, continua sendo uma região periférica de um país emergente que abriga 10% do seu efetivo demográfico e contribui para o PIB nacional com modestos 5%.
        Descoberto há aproximadamente 40 anos pela tecno-burocracia do Governo Federal como possível alavanca para o avanço econômico da nação, o continente amazônico se tornou objeto de um modelo de crescimento que os seus idealizadores chamaram de desequilibrado e corrigido. (Sudam 1976) Desequilibrado porque favorecia setores produtivos (mineral, madeireiro, agro-pecuário, pesqueiro empresarial etc.), dos quais eram esperadas vantagens comparativas no âmbito do mercado mundial. E corrigido, porque previa intervenções por parte do Estado para mitigar os desequilíbrios que a implementação do mencionado modelo trazia necessariamente em seu bojo. Contudo, o que a ação corretiva da mão pública pressupõe, é dispor de poder de fogo em termos financeiros.
        No entanto, fatores como o pagamento dos encargos da dívida externa, baixas taxas de crescimento econômico e, certamente, as receitas do fundamentalismo de mercado fizeram com que esse poder de fogo minguasse expressivamente.  As conseqüências deste enredo são bem conhecidas: a devastação da extraordinária biodiversidade amazônica e a marginalização sócio-econômica de crescentes segmentos da população regional acabou se tornando duas faces da mesma medalha. E isto justamente num momento em que nos países do hemisfério Norte a sociedade civil começava a se mobilizar cada vez mais em torno de temas ambientais como a contaminação dos rios e dos oceanos, a destruição das florestas e a questão climática.
        De qualquer maneira, diante das pressões que estavam sofrendo por parte desses novos atores do campo ecológico em sua própria casa, os governos dos Sete Países mais Industrializados (G7) aprovaram em dezembro de 1991 o Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil, lançado oficialmente durante a Eco 92 no Rio de Janeiro, que problematizava o cenário da destruição socioambiental em nível global. No entanto, mesmo considerando que os projetos do PPG7 geraram insumos notáveis para a definição de opções sustentáveis de aproveitamento dos recursos naturais da região; em sua essência o Programa pouco contribuiu para a proteção das florestas amazônicas. Aliás, por uma razão bastante simples: limitava-se à experimentação de iniciativas piloto, deixando a questão da transformação dos seus achados em práticas generalizadas por conta das instâncias governamentais do Brasil. Ora, estas, ao enfrentarem a duras penas os impactos nocivos da década do desenvolvimento perdido da América Latina, não estavam, nem de longe, em condições de cuidar, de fato, de uma Região de dimensões continentais. Encurraladas entre as imposições dos representantes do sistema financeiro global - que cobravam políticas de contenção das despesas públicas - e as reivindicações dos movimentos ecológicos do mundo inteiro - que insistiam na implementação de políticas eficazes de preservação da maior floresta tropical contínua deste planeta - as instâncias da política brasileira encontravam-se no meio de um fogo cruzado, entre cobranças nitidamente excludentes. Poderiam atendê-las, concomitantemente, caso soubessem assobiar e chupar cana ao mesmo tempo. Mas já que não sabiam, seguiam as receitas que vinham dos grão-vizires da banca internacional.
        Em conseqüência, se instalou na Amazônia, no decorrer da última década do século XX, uma “fronteira experimental” (B. Becker), onde inúmeros atores (inter) nacionais insistiam em testar alternativas ao cenário da destruição sócio-ambiental. Mas, embaixo desta redoma artificial, por sua vez distante das raízes sócio-culturais dos próprios protagonistas regionais, potencializavam-se os desequilíbrios que a forçada ocupação da Região tinha gerado, manifestando-se através de uma crescente concentração fundiária, de um inchaço desenfreado das áreas urbanas e de expressivas taxas de desmatamento, que acabaram transformando a hiléia amazônica na maior emissora de carbono de todo o Brasil.
        E essa situação continua em vigor. Na região inteira!  Apesar do fato de que na década passada o Governo Federal tenha insistido na retomada do papel do Estado como indutor e regulador do desenvolvimento nacional, implantando uma espécie de capitalismo organizado que gira em torno da função estruturante da mão pública, mas obviamente não foge das imposições de um sistema econômico global (que, ao forçar todos os seus stakeholders a rezar o pai nosso da competitividade sistêmica) está aprofundando a polarização social e espacial no âmbito do território nacional, deixando, conseqüentemente, a Amazônia em sua condição de refém do mencionado modelo de crescimento desequilibrado que lhe foi imposta nas últimas décadas do século passado. (Mitschein, Chaves 2014).

II

"Transformando a Amazônia o Brasil se transformará. (...)”, escreveu Roberto Mangabeira Unger, que entre outubro de 2007 e junho de 2009 foi responsável pela Secretaria de Assuntos Estratégicos do Governo Lula. E prossegue: “Hoje, a discussão do destino da Amazônia serve como alavanca de pressão do mundo sobre o Brasil. Pode, porém, abrir espaço para nós no mundo. Para isso, temos de mostrar como, ao reafirmar nossa soberania na Amazônia, podemos fazê-lo a serviço não só do Brasil, mas, também, da humanidade. Uma iniciativa nacional a respeito da Amazônia é capaz de esclarecer e de comover o país. Presta-se a uma iniciativa de libertação nacional. No século 19, completamos a ocupação do litoral. No século XX, avançamos para o centro-oeste. No século XXI, reconstruiremos o Brasil ao reinventar a Amazônia." (Belém 2008, p. 1, destaques dos autores)
        Abordando os territórios já desmatados da região - uma gigantesca massa territorial de quase 800.000 km2 que ultrapassa mais de duas vezes a extensão geográfica de um país inteiro como a Alemanha reunificada - como virtual espaço de inovação, onde se deve construir "na agricultura, na pequena indústria e nos serviços um modelo econômico que não repita os erros do passado", o intelectual brasileiro defende a geração de sinergias entre "indústrias de ponta, "pós-Fordistas" (que) podem produzir, de maneira não padronizada, máquinas e insumos que a retaguarda de empreendimentos menores e mais atrasados consiga usar." (ibid. p. 4).
        Contudo, há de se levar em conta que uma iniciativa ambiciosa de recuperação das áreas alteradas da Amazônia através de sua revitalização econômica em moldes sustentáveis, se choca frontalmente com as determinações de uma política econômica que, não obstante sua retórica anti-neoliberal, reserva a setores como educação, ciência e tecnologia, gestão ambiental, agricultura, organização agrária e indústria magros 5,68 % do Orçamento Geral da União, mas destina aproximadamente 40% ao pagamento de juros, amortizações e refinanciamentos da dívida pública do país (dados de 2013). No entanto, por mais que esta "brutal transferência de recursos públicos para o setor privado - nacional e internacional" (Fatorelli, 2011) esteja representando hoje o nó górdio da política brasileira, os principais protagonistas desta última demonstram pouca vontade para desatá-lo porque preferem evitar conflitos com os bancos nacionais, estrangeiros e investidores internacionais que, junto com as seguradoras, detêm 62% do estoque da divida pública brasileira. Trata-se, sem dúvida, de uma postura entendível no âmbito de um sistema econômico global que, mesmo depois da queda do Muro de Wallstreet em 2008, continua sujeito aos humores dos mercados financeiros que, pelo seu próprio tamanho e seu baixo nível de regulação, conseguem atrelar, no mundo inteiro, a política real às suas expectativas de rentabilidade. Mas, não deixa de revelar uma predisposição perigosamente omissa, uma vez que acaba empurrando com a barriga as dramáticas mazelas sociais e ambientais que, das mais diversas formas, estão castigando todos os territórios do Brasil. E, ainda mais: está negligenciando radicalmente o excepcional poder de barganha que, em princípio, a maior floresta tropical do planeta e os extraordinários serviços ambientais, suscitados por ela, podem proporcionar para o Brasil numa sociedade planetária que está cada vez mais ameaçada pela acelerada destruição das bases naturais de sua sobrevivência. 
         Mas, como transformar esse poder virtual em uma realidade palpável?
        No dizer de Mangabeira Unger, através de uma política que faz do "soerguimento da Amazônia prioridade brasileira na primeira metade do século XXI," transmitindo com clareza de que maneira a reafirmação da soberania nacional no território amazônico servirá tanto ao Brasil como à humanidade toda. Uma política, portanto, que precisa se afirmar através do estabelecimento de uma relação mais equilibrada entre economia e ecologia que, no âmbito do trópico úmido, pressupõe a criação de uma moderna civilização da biomassa, capaz de matar dois coelhos com uma cajadada só: ao priorizar o "uso múltiplo da biomassa terrestre e aquática como alimento humano, ração para animais, adubo verde, bioenergias, materiais de construção, fibras, plásticos, demais produtos da química verde e dos bio-referenciais do futuro" (Sachs 2009) acaba incentivando, aliás, em todas as regiões do território nacional, as potencialidades endógenas de desenvolvimento dos múltiplos espaços locais. E pelo fato de abordar os ecossistemas ainda intactos como um renovável tesouro de insumos naturais para os mais diversos campos da reprodução humana, está justificando de uma maneira didaticamente clara a necessidade imperiosa de sua proteção, facilitando, assim, a "redução da velocidade do desmatamento" que, no caso brasileiro, representa o "maior potencial de mitigação do efeito estufa" (Fearnside, 2003, p. 72). E mais: proporciona condições para organizar trocas mutuamente benéficas entre os habitantes das reservas indígenas da Amazônia e as populações do seu entorno no âmbito de iniciativas de reflorestamento com espécies nativas.
        Nesse contexto, cabe lembrar que, em territórios de colonização antiga e recente como no nordeste e no sudeste do Estado do Pará, os últimos estoques de floresta primária se encontram justamente no habitat dos povos Tembé e Kayapó, onde o desmatamento e a ocorrência de incêndios são reconhecidamente bem menores do que nas áreas fora do seu perímetro. (Mitschein, Rocha, Dias 2012)    
        Contudo, por mais que estejamos reconhecendo que o mainstream da política brasileira continua dando pouca atenção a estratégias acima referidas, encaramos a intensificação de sua discussão nos mais diversos foros da sociedade civil, do setor privado, e das instituições públicas como uma necessidade imperiosa e inadiável diante dos evidentes gargalos de um regime de acumulação de cunho neo-desenvolvimentista que potencializa visivelmente as polarizações sócio-espaciais no Brasil inteiro e não livra a Região amazônica do seu papel de colônia mineral e energética das regiões economicamente mais competitivas do país.  
        Entendemos que a iniciativa de discutir alternativas para a construção de um Brasil sustentável, passa, também, pelo comprometimento com um amplo debate a reinvenção da Amazônia nos termos sucintamente levantados. Termos, aliás, que se opõem com veemência às “soluções uniformizantes que a tecnocracia arrogante e despreocupada com o contexto social, tenta impor ao mundo inteiro”. (Sachs 1986, p. 124).  



Literatura:
Fatorelli, M.,L.: A inflação e a divida pública, in: Le Monde Diplomatique, Ano 4, Número 64, junho 2011
Fearnside, P.: A Floresta Amazônica nas Mudanças Globais, Manaus 2003
Mangabeira Unger, R.: Projeto Amazônia - Esboço de Uma Proposta, Belém 2008
Mitschein, T.,A.; Rocha,G.;Dias, C.: Territórios Indígenas e Serviços Ambientais na Amazônia: O Futuro Ameaçada do Povo Tembé no Alto Rio Guamá (PA), Belém 2012
Mitschein, T.,A.;Chaves, J.;F.: Desenvolvimento local e o Direito à Cidade na Floresta Amazônica, Belém 2014
Sachs,I.: Ecodesenvolvimento: crescer sem destruir, São Paulo 1986
Sachs, I.: Rumo à Ecosocioeconomia. Teoria e prática do desenvolvimento, São Paulo 2006
Sachs, I.: A crise: Janela de oportunidade para os países tropicais, in Le Monde Diplomatique, Brasil, http: UOL.com.br/2009 -02
SUDAM: II Plano Nacional de Desenvolvimento. Programa de Ação do Governo para a Amazônia, Belém 1976